“O povo acordou”,
diz o otimista. Ele está no meio da praça, segurando a bandeira de um partido
político de oposição, com uma camisa estampando o rosto do Che Guevara (aquela
foto clássica). Eu caminho lentamente, esboço um meio-sorriso e, antes de
seguir meu trajeto, ouso opinar: “Espero que ele continue acordado durante as
próximas eleições”.
Embora não tenha
causado nenhuma reação significativa naquele otimista, minha frase faz muito
sentido: Será que o povo realmente se curou dessa doença estranha, que faz com
que ele desmaie de sono diante de uma urna eletrônica? Isso explica por que
alguns questionáveis políticos seguem no poder, pelo enésimo mandato. Explica
também por que alguns despreparados políticos assumem o poder, mesmo se
declarando como tais. Alguns deles são nossos parentes, vizinhos, “chegados”,
colegas de mesa de bar e afins que, meses antes das eleições, nos procuram e
pedem aquela “forcinha”.
Fico feliz que
o povo tenha acordado. Quando acordamos, saímos da cama, vamos ao banheiro e
olhamos no espelho. É ótimo olharmos no espelho pela manhã. Quem sabe o povo
siga essa rotina e olhe no espelho, tire as remelas do canto dos olhos, lave o
rosto, escove os dentes e passe um pente nos cabelos, tentando parecer um pouco
mais bonito do que, de fato, é.
Calma, antes
que me apedrejem como se eu fosse um prédio comercial, vou tentar esclarecer. Não
precisam pichar o muro da minha humilde residência, também me incluo nessa. E
olha que tenho arduamente tentado me esquivar de tudo isso. Esse povo que se
orgulha do chamado “jeitinho” brasileiro, que não perde a oportunidade de se
dar bem, dentro ou fora da lei. Esse povo que “molha a mão” do guarda. O mesmo
povo que, hoje, é estudante, trabalhador ou desempregado, e, amanhã, é
vereador, senador ou deputado, com os mesmos hábitos, mas com maiores
oportunidades. Oportunidades de se dar bem.
Claro que
detesto política. A política me fez detestá-la. Acho indispensável, mas a
detesto. Acho que política é uma vocação; você abdica de seus interesses
particulares em prol do coletivo. Lindo! A teoria é magnífica. Quem não faz
parte do circo político vota, cobra, questiona, e não zela pelo patrimônio
público, não se importa com suas pequenas artimanhas, se está furtando energia
elétrica, superfaturando, sonegando, corrompendo... No fim, somos farinhas do
mesmo saco.
Apoio as
manifestações, principalmente aquela silenciosa, longe dos holofotes, longe das
redes sociais, despida de tatuagens, máscaras, maquiagens, e camisas do Che
Guevara. Apoio demais a manifestação comportamental. A honestidade, a
conscientização, seja quando eleitor, seja quanto eleito. Gosto desse tipo de
revolução. Isso é evolução.
Desconfio de revolucionários
de butique. Que precisam chamar a atenção desesperadamente, mesmo que, para
isso, se transformem naquilo que estão combatendo. Aquela máxima “seu direito
termina quando começa o dos outros” é válida. Como vou aplaudir manifestantes
com pedras nas mãos, dispostos a atirá-las a esmo? Como vou apoiar pessoas que
depredam patrimônio público ou particular, que impedem seus compatriotas de
chegarem sãos e salvos em casa? E os pseudo-justiceiros que invadem sites para
dizer: “faça o que digo; se não fizer, você é um imbecil”?
Não apoio a
falta de respeito – não precisa me lembrar, sei que muitos políticos não possuem
o mínimo de respeito – mas, se os condeno, por que devo ser igual? Desconfio de
quem pensa o contrário, daquele que defende a anarquia, desordem, em busca da
ordem; ou que defende a violência em busca da paz. Desconfio de quem se
contradiz.
Para mim, uma
manifestação tem que ter motivo e objetivo. Acho um pouco tarde para
manifestarmos nossa indignação sobre a organização da Copa. De que adianta?
Para um estrangeiro, é apenas uma multidão de dignos representantes do
desordeiro povo brasileiro. Para uma autoridade, são meros marginais, nada que
a tropa de choque não consiga deter. Para um policial, sim, isso é dor de
cabeça: expõe seu despreparo, e pode leva-lo a algum inquérito administrativo,
caso não consiga controlar a situação e seja obrigado a extrapolar, digamos, a
sua atuação.
E, em tempos
de rede social, tudo vira “massa”, “show” ou algo assim. Inclusive, aquele
otimista do primeiro parágrafo, continua na mesma praça, mas, agora, está
sentado em um banco, postando algumas mensagens no seu facebook, pelo celular.
Ele fotografou um policial segurando um spray de pimenta, e se sente um premiado
fotógrafo, correspondente de guerra.
Nosso amigo
manifestante não anda de ônibus, já teve problemas com a polícia por dirigir
alcoolizado e se negar a fazer o teste do bafômetro. Antes dessa manifestação,
havia participado da última “Marcha da Maconha”. Ah, e não sabe nem da metade
da história do Che Guevara.
O povo acordou, e está se olhando no espelho.